O Cânon Vicentino

O Cânon Vicentino

Vicente Lerinense, Commonitorium (434)
(Ed. Moxon, Cambridge PatristicTexts)

II. (1) Eis porque dediquei, constantemente, meus maiores desvelos e minhas diligências a investigar, entre o maior número possível de homens eminentes em saber e santidade, a maneira de achar uma norma de princípios fixos e, se possível, gerais e orientadores, para distinguir a verdadeira fé católica das degradantes corruptelas da heresia. A resposta invariável que recebi resume-se no seguinte: querendo eu ou querendo alguém descobrir as fraudes dos hereges evitar as armadilhas e permanecer robusto e firme na fé sadia, devemos, com ajuda do Senhor, fortificar nossa fé de duas maneiras: primeiramente, confiando na autoridade da Lei divina e, em segundo lugar, perseverando na tradição da Igreja Católica.
(2) Aqui, talvez alguém perguntará: estando o cânon das Escrituras completo e suficiente em si, que necessidade ainda temos de lhe juntar a interpretação da Igreja? A resposta é essa: sendo profundas as Escrituras, não lhes dão a mesma interpretação todos os homens. As proposições dum mesmo escritor são comentadas diversamente por homens diversos, a tal ponto que parece ser possível delas serem extraídas tantas opiniões quantos forem os homens. Novaciano1 comenta desta maneira, Sabélio daquela, Donato de outra, e de outra Ário, Eunômio5 e Macedônio6; Fotino7, Apolinário e Prisciliano9 explicam de um modo joviniano10, Pelágio e Celestio explicam de outro modo, e, recentemente, Nestório tem interpretado diferentemente dos outros. Sendo, pois, tão intrincado e multiforme o erro, temos grande necessidade de estabelecer uma regra de interpretação dos profetas e apóstolos que se harmonize com o padrão interpretativo da Igreja Católica.
(3) Ora, na própria Igreja Católica toma-se o máximo cuidado por conservar AQUILO QUE FOI DITO E CRIDO, EM TODO LUGAR, EM TODO TEMPO E POR TODO FIEL.
É genuíno e propriamente “católico”, como declara o sentido do termo, aquilo que compreende tudo universalmente. A regra nossa será, pois, guardada, se aceitarmos os critérios de universalidade [isto é, ecumenicidade], antiguidade e concordância. Universalidade, reconhecendo que a única fé verdadeira é aquela que toda a Igreja professa em todo o mundo. Antiguidade, não nos apartando das interpretações manifestamente aceitas por nossos antepassados. Concordância, dando crédito fiel, inclusive em se tratando da antiguidade, às definições e opiniões de todos ou de quase todos os bispos e doutores.

Notas:

  1. 1 Um extremado quanto à readmissão na Igreja daqueles que negaram a fé durante as perseguições. Apostatou em 251, tornando-se o primeiro antipapa.
  2. 5 Um ariano radical que dizia ser o Filho diferente (anomoios) do Pai e de uma substância diferente (heterooysios).
  3. 6 Bispo de Constantinopla, 342. Negou a divindade do Espírito Santo. Deposto em 360.
  4. 7 Bispo de Esmirna, na segunda metade do século IV. Um “monarquiano adocionista”.
  5. 9 Bispo de Abila, na Espanha, que ensinava uma espécie de gnosticismo maniqueísta (Ver Parte I, Seção IV, VII,b. Foi executada (c. 385), sendo o primeiro a ser executado por heresia (pois seus ensino conduzia a imoralidade.
  6. 10 C. 385. Jerônimo refutou sua depreciação pela virgindade e pelo ascetismo.

Fonte:

Documentos da Igreja Cristã, Bettenson, Henry (Editor) -Ed. Aste/Simpósio - São Paulo, 1998 -nº 124 - Pág. 148-150

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